quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Há vida após o câncer!

 

Vira e mexe ainda em 2020 eu me deparo com alguém dizendo "fulano está passando pelo câncer e está lendo o seu blog", as vezes tenho notícias do processo, outras não. 

Eis que nunca mais voltei aqui para dizer como estou, mas a volta foi espontânea e como deveria ser...hoje senti a necessidade de escrever, de pensar em tudo o que vivenciei, a som da trilha sonora internacional da novela Mulheres Apaixonadas, apesar do blogger ser uma ferramenta datada e de querer estar em uma fase de menos exposição pessoal. A gente precisa tomar uma certa distância, das emoções, das angústias, do medo do futuro...e se jogar. Precisamos as vezes do silêncio para quebrar os muros que ainda encontramos no tempo da remissão do câncer, muros que para mim foram mais densos de quebrar do que na fase latente do tratamento. E eu dei foi muita porrada, um processo único pra cada um. Não sei vocês que passaram por essa experiência, mas com o tempo vamos adquirindo novas ferramentas que ajudam a socar esse muro.

    Estou oficialmente curada pelas mãos da ciência médica desde 23 de maio de 2019. O sino tocou, fiz festinha e desde então esse barulho que veio de repente me despertou, me reconstruiu novamente, pois 2019 não foi um ano fácil para os sonhadores! Encontro-me em uma fase bem gostosa da vida, apesar de toda essa pandemia, das tristezas pessoais e outros problemas de saúde que passei (nada a ver com o câncer) e das coisas doidas que parecem que só acontecem no fantástico mundo de Marcelle ou dos capricornianos. 

    Como foram esses anos? Em 2014 eu fiz o Enem no auge de um protocolo de quimioterapia e carequíssima. Passei e fui estudar na Universidade Pública e de qualidade que me salvou, tudo pelo SUS, a minha amada UFRJ. Me formei no início de 2020 em Biblioteconomia e Gestão de Unidades de Informação, à um dia da pandemia ser declarada oficial. Os últimos dois semestres de Biblio, eu cursei junto com o início do mestrado, pensa na pauleira. Hoje estou a vias de qualificar, no mestrado em Ciência da Informação, por esta mesma casa pelo IBICT/UFRJ. Me joguei nessa nova profissão, recomecei do zero, e com ela viajei pra lugares lindos, apresentando trabalhos que ganharam até prêmios internacionais. Aprendi que informação salva vidas e que a minha foi uma delas!

    Durante esses anos de mais perguntas do que respostas, não foi fácil lidar com tantos medos. Eu iniciei 2014 com um estigma de pensamento, no qual imputava a mim que eu nunca mais iria me realizar profissionalmente, pois havia perdido tempo. Nós perdemos muita coisa com o câncer, mas eu coloquei na minha cabeça, apesar desse atravessamento de sentimentos, que seria uma construidora de pontes para novos sonhos, então tem ganhos também! Hoje consigo ver tudo o que eu não via até o ano passado, reconhecer que lutei e ganhei, que venho fazendo a minha estrada. Sou árdua defensora de que "Tem vida pulsando e não sobrevida"!  

    O meu sonho é esbarrar com as pessoas que passaram na pele por esta mesma situação do câncer em 2014 e daqui à 15, 20, 30 anos continuar todo mundo curadinho. De ver as suas trajetórias de vida pulsante...é tão difícil saber dessas pessoas que já estão na posição de anos a frente, não pela doença em si, mas porque não falam sobre isso, foram educadas por um sistema a não falar...e por isso resolvi escrever aqui como estou e dizer pra vocês que a vida pulsa, mesmo dentro de casa na segunda quarentena da minha vida.

    Falei para um "amigo de destino" essa semana, ao ler a escrita da sua jornada pessoal, e ver as semelhanças até com o "escutar as músicas do É o Tchan", que com o tempo vamos arrumando as essas sensações que a experiência do câncer causa dentro de nós. Eu bibliotecária e catalogadora de rolhas de vinho da pandemia nas horas vagas (risos) digo assim. Nós vamos colocando as emoções nas estantes do nosso "eu", criando acervos, as vezes com número de chamada, metadados e tudo... e vamos conseguindo acessá-las de uma forma mais amigável. Uma força maior, que pra mim é Deus, coloca nos detalhes a energia para superar todos esses momentos difíceis da vida. Eu não sou mais a Marcelle que há seis anos atrás começou a escrever esse blog, quatro dias após a descoberta do câncer. Contudo, carrego todas essas experiencias e trocas dentro de mim!

    Hoje eu consigo me olhar no espelho e me reconhecer frente as transformações que o meu corpo sofreu. Olhar para dentro de mim e começar a dançar com meus novos sonhos e propósitos de vida. Foram transformações que levaram consigo a identidade que eu havia construído para mim até os 24 anos e que achava sem me dar conta de que poderia ser imutável. Precisei me reconectar com o meu eu mais profundo, a minha essência, abandonar velhos hábitos...que bom que me deixei transformar por esta realidade de me reconhecer imperfeita, suscetível à vida, de reconhecer que ela chega e derruba planos e formas de controlá-la...e que mesmo tendo toda uma forma de catalogar derrubada...que tá tudo bem...que posso recomeçar e buscar novas formas de classificar a minha história.

    O matemático e bibliotecário Ramamrita Ranganathan disse uma vez que "a biblioteca é um organismo em crescimento". E penso que assim são as nossas "estantes", que não deveriam ser estanques aos processos. É preciso atualizar as coleções, acompanhar o tempo, os seres em movimento. Olhar pra natureza em movimento é entender a vida e ressignificar essas estantes ... Sentir o sol na pele com vigor, o cheirinho de terra molhada, ver as estrelas, os pássaros que voam (tipo as andorinhas da minha janela)... sentir o vento, que no inverno não é o mesmo que no verão ou outono... e que muito menos é igual ao da primavera... Não deveríamos ter esse receio de voltar atrás ou ir rumo ao novo...de reconhecer o erro, de acertar, de perder e até de ganhar.


Olha, quando criança eu tinha medo de andar de bicicleta. Mesmo colocando ela encostada na parede pra conseguir alcançar e sentar, ou com a ajuda das rodinhas eu consegui. Cara, eu lembro como se fosse hoje aquele momento da liberdade, do primeiro equilíbrio sem as rodas, e meu pai dizendo vai tô aqui atrás...e eu já longe e ele lá parado sem ir atrás de mim...e eu morta de medo.


Antes do câncer eu tinha muito preconceito com gatinhos, não entendia quem os tinha como bichinho de estimação... e hoje apresento a minha Nininha um amor de "cachorra".


Nossa eu morria de medo de ser jogada no vento pra me virar em uma terra estranha e sozinha...de vergonha de pedir para baterem foto! Olha eu expondo a figura na medina.
 


E é isso, quem sou eu, mas a vida é movimento...está escrito no vento, espalha aí, também há vida após o câncer!